sábado, 4 de janeiro de 2014

Lista Futebolística 04Jan2014 - Histórias do Fim de Ano e o Iluminado Sem-Sangue

Boa tarde a todos vocês meus caríssimos da Lista Futebolística.

Véspera de Natal e fui solicitado a realizar as compras para ceia. Tem fila para tudo no fim ano. Falta ter fila para entrar em fila.

Chego num açougue e pergunto ao açougueiro:
_ Bom dia amigo, você tem lingüiça para tropeiro?
_ Tem não. Responde o homem de branco num tom seco, embora educado.
_ Por acaso você tem outra? Perguntei.
_ Tem essa aqui. Novamente seco e educado.
Então fiz a pergunta de quem não entende nada de carnes.
_ E ela faz o mesmo papel?

Depois de um segundo refletindo o homem com a faca na mão respondeu com certa inocência.
_ Olha moço, papel eu não tenho não.

Parei tentando entender se existia alguma intenção na resposta. Na hora um açougueiro ao lado abandonou a carne que cortava e debruçou-se sobre o balcão se contorcendo de rir. Pensei até que ria de mim. Mas não. 
Enquanto o respondedor me olhava com a cara de “mais alguma coisa?”.

Por fim, vi que ele respondia com seriedade a respeito do “papel”.




Pois é caríssimos, nesse fim de ano encontrei com alguns personagens da minha infância. O maior craque de bola que já vi jogar, o Zaca, e um sujeito que não via há décadas também apareceu. O Evaldo.

Começamos a lembrar do tempo em que jogávamos no portentoso Estrela Futebol Clube. Eu e o Evaldo na zaga (ele é um negão que naquela época já era grande) e o Zaca jogava no lugar de quem sabe jogar, o meio campo.

Pois bem, aí entra a história que esqueci. O Evaldo me lembrou do dia em que sofremos a maior decepção de nossas vidas de boleiros. O personagem principal era o garoto que atendia pela alcunha de “Sem-Sangue”.

Enquanto nós três éramos muito humildes e sem recursos, o Sem-Sangue portava a melhor chuteira, caneleira (eu nunca tinha usado uma) e meião que não precisava de elástico para ficar justo na canela. Um luxo de equipamento.

Porém, como Deus equilibra as coisas neste mundo, o talento do Sem-sangue para o futebol era inexistente. Horrível, com as pernas tortas, não sabia chutar, cabecear, correr e nada. Quase sempre dono da bola, nunca foi escolhido no par ou ímpar e, por isso, fazia de tudo para ser um dos que escolhia o time na pelada. Até aí tudo aceitável.

No entanto, dentro da cabeça do Sem-Sangue existia a certeza de que era um craque. Seu pai era o maior incentivador. Era o único pai que acompanhava todos os jogos do filho. Incentivava e dava conselhos à beira do campo de terra. Olha, o pai do Sem-Sangue era um exemplo de educação e dedicação. Tínhamos certeza que ele, assim como nós, sabia do potencial do filho. Mesmo assim estava lá todo jogo.

Na peneira do Estrela o Sem-Sangue foi o único reprovado. Um choque para o garoto. Nós adoramos. Por quê? Porque o cara era um mala. Mas mala mesmo!!! Enchia o saco de todos e com a bola rolando era hora de ir à forra em cima dele.

Num jogo marcado contra o time do Ratão, com direito a troféu, sabíamos que o mala do Sem-Sangue não iria. Já que tinha sido rispidamente dispensado pelo nosso treinador, o Carlinhos Papa-Coxão. Antes do jogo porém, o Sem-Sangue apareceu com o pai na beira do campo. Passou por nós sem cumprimentar. Estava magoado porque esperava que pedíssemos ao “professor” para que desse mais uma chance ao “craque” da Rua Japão. 
Veio nos pedir isso. Claro que negamos. Mais pela chatice que pelo futebol.

Começa o jogo contra o bom time do Ratão. Jogo duro comigo e o Evaldo espanando tudo que é bola e jogador que chegava perto da área. Durante o jogo vi o pai do Sem-sangue articulando alguma coisa com o Ratão. A bola caía no córrego, a poeira subia, o Sol queimava, o Zaca tomava umas pancadas e nada de gol.

Segundo tempo, uma cena me deixou curioso. De repente vi o Sem-Sangue com o uniforme do time do Ratão. Tranquilo, se ele entrasse seria como um a menos no time adversário.

Jogo indo pro final e o Sem-Sangue entra em campo. O técnico Papa Coxão grita:
_ Tranquilo, um minuto e acaba!!!

Escanteio para o time do Ratão. Volta o time todo do Estrela para área. O empate era uma maravilha pra gente, já que o adversário tinha fama de imbatível. Com o resultado ninguém levaria o troféu e um novo jogo seria marcado. Todos cansados e já desejando o fim do jogo.

O time do Ratão cobra o escanteio. Havia uma multidão na área, nem bola de gude passaria naquela retranca. A danada da bola veio, foi cabeceada, rechaçada, bateu em tudo que é quina de jogador, o goleiro voou nela e errou o tempo, a bola continuou quicando, todo mundo tentava chutar. 
O time do Ratão estava tão cansado que praticamente só os jogadores do Estrela chutavam a bola, mas a teimosa rebatia em qualquer coisa e voltava pra área.

De repente, a redonda corre em direção à linha de fundo; bem rente à trave. Quando percebi a trajetória dei graças a Deus. O empate estava garantido.

Porém, como um fantasma, o esbranquiçado Sem-Sangue estava no caminho da pelota. Sim, ela foi em sua direção. 
Todo sem jeito ele preparou sua canhota “mortal” e num chute mais errado que certo, abriu o placar. Ratão 1 x 0 Estrela e fim de jogo.

Fiquei atônito. Olhei pro Zaca que parecia estar em transe, o Evaldo xingava Deus e o Mundo, o Papa Coxão soltou um sonoro palavrão.

_Pu&* que Pariu!!!!!

O Sem-Sangue conseguiu sua redenção entrando no último minuto do jogo. Passou por nós correndo e gritando:

_ Tomá no C* quatro olho!!! Olhando para o zaca.
_ Vai se fud$%r cabeção!!! Direcionado a minha pessoa.

E passou correndo em direção ao meio do campo sendo ovacionado pelos meninos do Ratão. O pai dele invadiu o campo aos prantos. Na corrida se desequilibrou e caiu. O filho o abraçou no chão e os dois ficaram ali empoeirados, na glória do campo de terra.

Uma lástima. Teríamos que aguentar o chato do Sem-Sangue se gabando daquele momento para sempre.

Por fim, o pai do garoto pagou cerveja para “comissão técnica” do Ratão, refrigerante para o time e ostentava um sorriso inquebrável.

Nós do Estrela, voltamos para casa excomungados pelo Papa Coxão e sem entender como aquilo aconteceu.

Foi a vitória do Sem-sangue. Aliás, foi a única.
Na semana seguinte, depois de muito se gabar e tirar onda com nossa cara, ele foi dispensado com louvores do time do Ratão.



Grande abraço a todos vocês meus caríssimos.

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